Henrique Paiva de Magalhães é um daqueles caras bem persistentes. Este paraibano, nascido em João Pessoa, criou vários personagens de HQ e se tornou um dos batalhadores mais incansáveis em prol dessa arte. Por anos teve suas tiras publicadas em vários jornais brasileiros e até em Portugal. Atualmente se dedica a sua editora Marca de Fantasia, onde publica vários livros, muitos dos quais voltados aos quadrinhos. Nessa excelente entrevista, ele fala da sua iniciação no mundo dos quadrinhos, seus personagens, suas idéias, sua editora e sobre os fanzines como publicação alternativa. Confiram o bate papo.
Por Alex Sampaio*
1. Quem é Henrique Magalhães?Eu diria que sou um sonhador, mas que, por precaução, mantenho os pés firmes no chão. Aliás, não precisa se alienar para viver de sonhos. Transformei minha arte, meu sonho, em algo prático. Na impossibilidade de viver de quadrinhos, virei professor e amplio o sonho de produzir publicações independentes – fanzines, revistas – com meus alunos.
2. Como surgiu seu interesse pelos quadrinhos?Como acontece com toda criança, na descoberta das primeiras leituras, no encantamento de uma linguagem não só escrita, mas, sobretudo visual. Ao menos em meu tempo de garoto, quando a televisão apenas começava a ganhar importância, nossas viagens se davam por intermédio dos quadrinhos, seja com as aventuras fantásticas de Tio Patinhas, com o maravilhoso universo infantil de Luluzinha e Mônica ou até com os dramas existenciais do Homem Aranha.
3. Qual sua formação como desenhista?Procuro sempre afirmar que não me considero um bom desenhista, apenas desenvolvi um modo particular de me expressar. Minha formação deu-se pela observação, pela cópia e recriação. Desde cedo eu praticava o desenho ampliando as personagens que mais gostava. Isto me deu uma certa noção de proporção e expressividade. Daí a criar minhas próprias personagens foi um passo natural, uma necessidade de comunicação e expressão.
4. Como surgiu sua personagem Maria?Eu começava a sentir vontade de não mais copiar figuras isoladas, mas criar histórias que me vinham à mente. Ainda adolescente, tinha uma grande vontade de me mostrar ao mundo, de dizer o que sentia, de enfim me afirmar como indivíduo pensante. Maria surgiu em 1975, quando eu tinha 17 anos, quase 18. Para criá-la fiz uma breve pesquisa sobre as personagens nas revistas que mais curtia. Estava descobrindo as tiras, publicadas no Caderno B do Jornal do Brasil, nas revistas Grilo, O Bicho, Patota e Eureka. As tiras, com seu formato breve, sucinto, de conteúdo questionador e instigante, me seduziam. Para não criar algo semelhante ao que já existia, observei que praticamente não havia personagens femininas nas tiras, com exceção de Mãi...ê!, de Mell Lazarus. Trabalhar então com o universo feminino foi o que me pareceu mais sedutor, pelo ineditismo e porque eu me identificava muito com ele. Depois vim descobrir que existia Marly, de Milson Henriques, mas esta personagem não tinha a mesma abordagem de Maria.
5. Maria foi publicada por anos em jornais, tendo um sucesso inquestionável. O que não deu certo para seguir um caminho definitivo no meio editorial?É notório o descaso das grandes editoras com os quadrinhos brasileiros. Não há investimento na área e o máximo que elas fazem é reproduzir porcamente (com traduções mal-feitas e cortes grosseiros) as personagens consagradas e de lucro certo. Neste contexto, Maria não teria mesmo a menor chance de circular em nível nacional. Quando Maria se firmou como personagem já não havia mais as revistas de tiras, onde talvez ela pudesse ser publicada, como ocorreu com Marly, de Milson, que saiu na Patota. A saída foi publicá-la nos jornais diários da Paraíba, que me serviram para desenvolver a personagem, refinar o traço e o humor. Em paralelo, eu mesmo editava as coletâneas de tiras numa série de revistas que teve 10 edições e um um livro, A maior das subversões. Posteriormente lancei o álbum Olhai os lírios do campo, mais o livro Espirituosa, há 30 anos e duas edições da revista Maria Magazine. Apesar desse investimento independente, ressinto-me de Maria não ter tido uma grande edição nacional, que a levasse a um público mais diverso que o dos fanzines.
6. Fale sobre suas outras publicações, como Top! Top!, Mandala e Quiosque.Estas publicações são fruto de um amadurecimento editorial em conseqüência de minhas produções independentes de revistas, livros, álbuns e fanzines. Elas vieram com a elaboração do projeto da editora Marca de Fantasia, que falaremos mais à frente.Top! Top! foi minha volta aos fanzines, depois de uma temporada na França. Nele eu segui o mesmo esquema de minhas publicações anteriores, os fanzines Marca de Fantasia, editado em João Pessoa e São Paulo, em parceria com Sandra Albuquerque, e Nhô-Quim, cujo primeiro número foi feito junto com José Carlos Ribeiro, de Carlos Barbosa, RS, editor do fanzine PolítiQua. Top! Top! responde a minha necessidade de trabalhar o texto jornalístico, investigando vários aspectos das histórias em quadrinhos com pesquisa, artigos, entrevistas e resenhas.Mandala, que inicialmente chamou-se Tyli-Tyli, surgiu para preencher uma lacuna editorial. Observei que havia uma grande produção de quadrinhos poéticos, também chamados filosóficos, circulando em fanzines dispersos. Minha intenção foi reunir esses quadrinhos em uma revista própria, dando-lhes coesão e visibilidade. O núcleo que formou essa revista foi composto por Flávio Calazans, Edgar Franco e Gazy Andraus, a quem vieram se juntar muitos novos autores que encontraram na Mandala seu espaço privilegiado para expressão.A Quiosque é uma revista de análise das mídias, voltada para o meio jornalístico e de comunicação. Serve para dar vazão aos artigos produzidos por professores e estudantes do Curso de Jornalismo, mas que se encontra aberto a todos.Esse título também serviu para denominar uma coleção de livros de bolso. A coleção Quiosque, que já se encontra na 12ª edição, aborda os mais variados aspectos dos quadrinhos e expressões da cultura pop. Nessa coleção constam vários títulos voltados ao estudo dos fanzines bem como sobre quadrinhos e arquitetura, ao estudo de personagens e séries, como Miracleman e Arquivo X e a investigação sobre o que é História em Quadrinhos Brasileira.A importância da coleção Quiosque, que tem despertado grande interesse do meio acadêmico, dá-se pela carência de uma bibliografia específica sobre quadrinhos no país. As editoras comerciais também negligenciam essa área, o que nos parece uma grande falta de visão editorial.
7. Como surgiu a Marca de Fantasia?Depois de experimentar tantas publicações de forma amadora e esporádica, achei que era o momento de pensar em algo mais consistente, que pudesse responder à enorme demanda dos autores e do público. O fenômeno da criação de editoras independentes já vinha se desenvolvendo em outros países, como nos Estados Unidos da América e na Europa, em particular na França. Isto foi uma conseqüência natural do desenvolvimento dos fanzines.Haveria um momento onde se teria que avançar em direção à criação de um mercado paralelo de publicações, intermediário entre o amadorismo dos fanzines e o meio exclusivamente comercial. As editoras independentes não visam o lucro como prioridade, embora não possam abrir mão dele, para seguir com as produções mais requintadas. Mas mantêm o espírito livre e experimental dos fanzines, voltando-se à descoberta de novos valores e à investigação sobre o universo dos quadrinhos. Foram esses princípios que me levaram a criar a editora Marca de Fantasia, em 1995.
8. Sua editora é basicamente virtual. O caminho para a segmentação é a Internet?A Marca de Fantasia, apesar do sucesso inicial, chegou a um impasse crucial. Não dava mais para seguir o ritmo imposto pelas condicionantes que dispúnhamos naquele momento para a distribuição das publicações. Até o final dos anos 1990, o mais comum era se trabalhar com o mesmo processo de distribuição dos fanzines, ou seja, pela via postal. Apesar de procurarmos hoje produzir edições mais elaboradas, continuamos amadores, as tiragens continuam pequenas, o que inviabiliza uma distribuição pelas vias convencionais.Para divulgar um novo título era preciso todo um trabalho desgastante e cada vez mais caro. Primeiro era preciso anunciar o lançamento, enviando para revistas e jornais uma circular de imprensa. Ao mesmo tempo, eu fazia um cartão postal para enviar pelos correios para uma lista de leitores. Isso levava tempo, dificultava o contato e custava caro. Até a compra se efetivar era preciso percorrer um longo caminho, o que gerou o distanciamento e desinteresse do público.Vivíamos já uma época de uma comunicação mais ágil, imediata, favorecida pela popularização da Internet. A saída era transformar a editora numa livraria virtual, tirando proveito desse incrível meio de comunicação. A sobrevivência da Marca de Fantasia deve-se a sua inserção na Internet. Com este meio pude ultrapassar os limites de meus 100 leitores, chegar a um público muito mais amplo e que cresce a cada dia, como uma corrente sem fim.
9. Como você seleciona os trabalhos para publicação em sua editora?Privilegio algumas linhas de produção, como os quadrinhos humorísticos, os cartuns e eventualmente a aventura, quando esta tem um conteúdo crítico com elementos culturais autênticos. O trabalho experimental também tem vez. Dividi minha produção em algumas coleções, que definem suas linhas editoriais. São: coleção Corisco, com quadrinhos experimentais; coleção Das tiras, coração, de livros de tiras de quadrinhos e cartuns; coleção Quiosque, de livros teóricos sobre aspectos diversos dos quadrinhos e cultura pop. Excepcionalmente publico álbuns, outras revistas e livros sobre cultura nacional.Guio-me sempre pela qualidade do material, seja textual, seja gráfico e procuro dar visibilidade aos novos autores. Também procuro fazer o resgate de obras seminais, como o trabalho do cartunista paraibano Luzardo Alves e de expressões internacionais desconhecidas ou pouco conhecidas no país, como o argentino Sergio Más, a francesa Claire Bretécher, o cubano Garrincha e o português Nuno Reis.
10. Quais os planos para o futuro da Marca de Fantasia?Recebo muitos originais para publicação e sinto não poder publicá-los imediatamente. Não tenho estrutura para isso, tanto financeira quanto operacional. Faço todo o trabalho sozinho, da seleção do material à diagramação, da impressão à intercalagem, da costura ao corte, da divulgação à venda. É um trabalho, mesmo que prazeroso, muito desgastante. Preciso tomar fôlego, estabelecer um ritmo mais racional. Vinha publicando dois livros por mês, o que é muito para dar conta de toda a cadeia de produção. Tenho tentado fazer apenas um livro por mês, mas sinto uma pressão muito forte para acelerar o ritmo. Os originais clamam sua edição e os autores ficam ansiosos para ver seus trabalhos editados, o que é bem compreensível.Na coleção Quiosque temos textos de Gian Danton e Bráulio Tavares como os próximos lançamentos. Mas há muitos outros aguardando a vez. Nos quadrinhos, os próximos livros serão A turma do Xaxado, pela coleção de tiras e a reedição de Lugares In-comuns, com tiras de Jaguar, lançada originalmente na década de 1970 pela editora Codecri, do jornal O Pasquim. Estou planejando algumas parcerias para novas coleções, que podem ser anunciadas no momento oportuno.
11. Quais seus personagens preferidos no mundo dos quadrinhos?Sem dúvida, Fradim, de Henfil, Pererê e Menino Maluquinho de Ziraldo, Mafalda, de Quino, Aline, de Adão Iturrusgarai, Luluzinha, de Marge e Agripine, de Claire Bretécher.
12. Você coleciona gibis?Transformei minha coleção na Gibiteca Henfil, que dirijo em João Pessoa. Não dava mais pra guardar as revistas em casa e resolvi socializá-las. Com a abertura da Gibiteca Henfil a coleção se multiplicou rapidamente por conta das doações dos leitores. Hoje não me dedico tanto a fazer coleções, mas procuro ter algumas edições do que é mais representativo.
13. Que acha dos fanzines como publicação alternativa?Os fanzines são fundamentais para o exercício gráfico e para a troca informações. Eles certamente não acabarão jamais, mesmo enfrentando a sedução dos meios eletrônicos. Vejo cada vez mais jovens se interessando em ter sua própria publicação. Enquanto houver necessidade de expressão e liberdade de pensamento, haverá fanzine.
14. Tem acompanhado os artistas brasileiros que fazem HQ? Poderia citar algum que você admira?Edgard Guimarães é um autor muito criativo e provocador. Suas HQ publicadas em seu fanzine QI já geraram muita polêmica e envolvimento do público. Edgar Franco, Gazy Andraus e Flávio Calazans trazem um sopro de renovação e experimentação aos quadrinhos, que merecia ter uma ampla difusão. Wellington Srbek e André Diniz, além de ótimos editores, fazem um trabalho textual magnífico. Junto com Marcelo Marat, Antônio Éder e Gian Danton eles tem mostrado a capacidade de nossos roteiristas.Há que se louvar o trabalho de Cedraz, o de Lin, de Klévisson, de J. Marreiro, enfim, tem muita gente boa produzindo, que é injusto e antipático ficar citando alguns.
15. Existe futuro para os quadrinhos brasileiros aqui no nosso país, ou teremos sempre que bater nas portas americanas?Há futuro, sim, desde que tomemos as rédeas da produção. É hora de pensarmos na profissionalização. Alguém tem que substituir essa geração conservadora que domina o meio editorial nacional. Não é o caso de tomarmos seus lugares, mas de criarmos os nossos. A editora Circo provou que isso é possível. Basta organização, uma certa visão empresarial, criatividade e perseverança.
16. Muitos acham que a HQ Brasil não funciona por falta de bons roteiristas. Qual sua opinião sobre isso?O melhor dos quadrinhos que está sendo lançado no Brasil está no meio independente. São bons roteiristas e desenhistas que não encontram espaço nas editoras. Sem xenofobia, é preciso olhar e valorizar o que temos em casa.
17. Muitos artistas estão buscando a Internet para divulgar seus trabalhos. Esse é sem dúvida o caminho alternativo para se publicar HQ?A Internet, para mim, serve mais como veículo que como meio. Embora seja um ótimo veículo para a difusão de tudo, inclusive de quadrinhos, o meio impresso continua sendo fundamental. Não creio que o meio virtual substituirá o livro impresso, o jornal, a revista e os álbuns de quadrinhos.
18. Henrique Magalhães já procurou alguma editora para mostrar seus trabalhos?Certa vez procurei a Grafipar, quando ela já havia esgotado sua capacidade produtiva. Não houve interesse por Maria. O tipo de quadrinhos que eu faço não tem veículos adequados para a sua difusão, que seriam as revistas de humor e de tiras. Para a edição de álbum já tive duas propostas que não foram adiante, mais por causa de minha sobrecarga de trabalho que por desinteresse dos editores. Eu não queria apenas fazer uma compilação de tiras. Como não tive tempo para produzir algo novo, o projeto parou.
19. O editor brasileiro é mesmo imediatista nos lucros?Não só imediatista quanto limitado. Sua visão não ultrapassa os modismos importados, como as infinitas sagas de super-heróis, que já são decadentes no próprio país de origem, ou ainda os quadrinhos japoneses, que se apóiam na sedução midiática dos desenhos animados. Quanta coisa boa, em nível mundial, não conhecemos por causa da mediocridade dos editores! A França e a Espanha têm um mundo de quadrinhos que certamente, se tivéssemos acesso, contribuiriam de forma fundamental para a formação de nossos autores e do público.
20. Qual sua opinião sobre uma lei de reserva de mercado para os quadrinhos? Apesar de ter participado efetivamente junto à AQC (Associação de Quadrinhistas e Caricaturistas) do Estado de São Paulo na década de 1980 pela aprovação de uma lei de reserva de mercado para os quadrinhos brasileiros, acho que esta não é a melhor solução. Não é por decreto que se vai criar mercado. Além do desinteresse dos editores, a realidade é que nossos quadrinhos são caros, e há uma justificativa para isso. Os quadrinhos estrangeiros são distribuídos massivamente, por meio dos "syndicates", o que os torna muito baratos. Os autores brasileiros normalmente vendem seu trabalho para uma única publicação, ou, no caso das tiras, para um número muito limitado de jornais. Para sobreviver, o autor nacional tem que cobrar o preço justo de sua arte, ou até bem menos, o que ainda é muito caro para concorrer com o material importado. Certa vez Henfil falou que o ideal seria taxar os quadrinhos importados para que os nossos pudessem concorrer mais ou menos em pé de igualdade com eles. Ainda assim, para mim, haveria uma brutal desigualdade, pois as personagens estrangeiras chegam aqui cercadas por uma grande estrutura mercadológica, associadas a diversas mídias, como desenhos animados para TV, filmes de cinema, bonecos e todo tipo de insersão em objetos comerciais. Além da taxação dos quadrinhos estrangeiros, penso que se deve criar estruturas de distribuição com a mesma estrutura dos "syndicates", bem como promover a criação de associações e editoras independentes.
21. Suas considerações finais:A luta é árdua e constante, mas quanto prazer nos dá esse mundo dos quadrinhos! Devo a ele boa parte do que sou, minha disposição de luta, minha visão de mundo, minha motivação. Precisa ser mais importante que isso?
* Alex Sampaio é editor do fanzine Made in Quadrinhos, colecionador de gibis e colunista desse blogger.
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