11/06/2009

Quadrinhos que valem milhões



Como o comércio de desenhos originais de história em quadrinhos criou um mercado que movimenta milhões de dólares por ano.

Por: Thiago Cid

Até pouco tempo atrás, colecionar histórias em quadrinhos era coisa de criança. Hoje em dia, as páginas sobre aventuras de detetives e super-heróis ganharam status de arte pop e colecioná-las se tornou um passatempo com que poucos adultos podem arcar. Especialmente se o objeto de desejo forem os desenhos originais usados para criar as revistas. Nos Estados Unidos, o comércio desses originais criou um mercado sólido que desafia a crise e mantém convenções e leilões regulares, onde um desenho em papel pode alcançar preços de até seis dígitos.

É o caso de um desenho do personagem Lanterna Verde, assinado por Neal Adams e Bernie Wrightson, que o colecionador e comerciante Joe Mannarino comprou por US$ 115 mil, ou cerca de R$ 265 mil. Ele achou uma barganha. Em termos de quadrinhos, Mannarino sabe o que faz. Ele trabalhou por 30 anos como executivo de diversas editoras e é o agente de alguns nomes ilustres do meio, como Frank Frazzeta - mestre dos quadrinhos cujos traços realistas deram vida a Conan, o Bárbaro, Homem Aranha e Tarzan - e Jim Steranko, que já desenhou todo o panteão de heróis da Liga da Justiça, entre os quais figuram Super-homem, Batman e Mulher Maravilha.

Segundo Mannarino, não há um total de quanto o mercado de desenhos originais movimenta por ano, mas ele arrisca uma renda de pelo menos US$ 100 milhões. “Em uma convenção em San Diego, na Califórnia, há poucos meses atrás, eu vendi US$ 1,5 milhão, R$ 3,5 milhões, em três dias”, afirma, ressaltando que não é o único grande comerciante do setor.

Jerry Weist é um outro grande colecionador e escreveu o Guia de Preços de Comic Art, como são chamados, em inglês, os desenhos originais. Weist conta que já viu transações que chegaram a US$ 200 mil, ou R$ 465 mil, como a capa da revista Weird Science nº 16, de 1952, que traz uma invasão de alienígenas saídos de um disco-voador.

A procura por quadrinhos se tornou tão grande que convenções internacionais, como a San Diego Comic-Com, realizada em San Diego, nos EUA, atraem centenas de milhares de pessoas. Prestigiosas casas de leilão, como a Sotheby's, de Londres, perceberam o filão e realizam vendas dessas obras.

Mas como simples desenhos podem ter chegado a esses valores? Segundo Mannarino, parte da valorização se deve à história, parte ao reconhecimento - segundo ele, merecido - do talento dos ilustradores das histórias. A parte histórica se refere à Era de Ouro dos quadrinhos, que foi de 1938 a 1949, também conhecida como a fase dos super-heróis clássicos. Foi quando nasceram personagens como o Super-Homem, criação de do escritor Jerry Siegel e do artista Joe Shuster, cuja primeira aparição foi na revista Action Comics nº1. Mannarino tem um exemplar dessa edição avaliado em US$ 34 mil - R$ 79 mil.

Dessa fase restaram poucos originais. Dois foram os motivos: durante a Segunda Guerra Mundial, houve um esforço nacional para coletar materiais para serem usados na guerra. Tudo era reciclado e não entregar sua coleção de quadrinhos em nome da guerra poderia ser visto como anti-patriótico. O segundo motivo foi o medo das editoras de que burlassem os direitos autorais. Por isso, logo após concluírem os negativos, os editores jogavam fora os originais. O resultado é uma escassez de obras que faz as remanescentes valerem milhares. “Não há nenhum desenho original do magnífico Joe Shuster. Se houvesse, valeria centena de milhares de dólares”, afirma Mannarino.

A segunda fase compreende os anos de 1950, quando os super-heróis estavam em baixa e o interesse migrou para histórias de terror, ficção científica, crime e mistério. Essa fase gerou revistas como Contos da Cripta, que virou uma série para TV americana, e Tex, sobre as aventuras de um cowboy, que até hoje são vendidas nas bancas.

A terceira fase seria o renascimento dos super-heróis, primeiro com o surgimento de Flash, o homem mais rápido do mundo, pela DC Comics. Mas o marca da nova era foi quando o roteirista e diretor da editora Timely, Stan Lee, e o artista Jack Kirby, conhecido como o rei dos quadrinhos, transformaram-na em uma editora com o nome de sua principal publicação: Marvel Comics. A Marvel nasceu para fazer frente à DC e seu crescente sucesso e gerou super-heróis como o Quarteto Fantástico e os X-Men. Nascia ali a Era Marvel dos quadrinhos, que para alguns durou até a década de 1970 e para outros permanece até hoje.

O critério para avaliação de um quadrinho não depende necessariamente de sua data de publicação. Para Weist, valem mais fatores como o autor do desenho, a importância do personagem, se é uma história comum ou um grande acontecimento na vida do herói. Um desenho original de Dick Tracy do anos de 1959 sai por US$ 2 mil, perto de R$ 4500, enquanto um desenho de Jack Kirby dos anos de 1980 pode ser avaliado em US$ 10 mil, ou cerca de R$ 23 mil.

Mas o mercado de "comic art" não vive só de super-heróis. No início do mês, a casa de leilões Bonhams, de Londres, vendeu um desenho dos personagens infantis Ursinho Pooh, Tigre e Leitão por US$ 50 mil, aproximadamente R$ 115 mil. Não há muito apuro artístico no desenho, feito a lápis. O valor estava nas mãos que deram forma aos traços: E.H. Shepard, um dos ilustradores mais famosos da literatura infantil mundial.

Além dos Estados Unidos, a Europa é outro local onde há grande procura por originais de quadrinhos. O maior negócio já realizado ocorreu em um leilão em Paris, quando uma pintura de 1932 do personagem Tintin, do artista belga Hergé, foi vendida por 764 mil euros, o que equivale a R$ 2,6 milhões.

Um dos exemplos de fanáticos que consolidaram o velho continente como o mais recente mercado de quadrinhos é o colecionador Bernard Mahé, que deixou seu emprego em um banco de investimentos para abrir a Gallerie du 9éme Art na capital francesa Paris. Ele deseja pavimentar de vez o caminho para a nova geração de colecionadores, que preferem os exclusivos originais às coleções de revistas, que são um produto industrializado e com milhares de reproduções autênticas.

Sobre o alto valor, nenhum colecionador acha que os originais estejam supervalorizados. Joe Mannarino até arrisca uma comparação com arte moderna. “O talento de um artista para criar com perfeição cenas fantásticas não pode ser depreciado. Ele não possui modelos, tem de criar tudo da cabeça e o traço é perfeito”, argumenta. Mannarino também lembra que artistas como Carmine Infantino ou Curt Swan faziam revistas inteiras com nove quadrinhos em cada uma das 26 páginas todos os meses. “O mestre Jack Kirby desenhava e escrevia os roteiros de cinco revistas por mês, todas com perfeição. Por isso os autores começaram a ser venerados”.

A cara diversão de homens como Weist e Mahé deixou assegurado este “super-legado” para as gerações futuras. Sem medo da crise, eles até dizem que, em tempos de crise, é preferível investir em quadrinhos do que arriscar em ativos podres do mercado financeiro. “O mercado de originais de quadrinhos já existe há 40 anos e nos últimos cinco anos teve um impulso tremendo. O passar do tempo só faz as obras valorizarem e quem gastar um dinheiro com elas hoje certamente terá lucros mais na frente”, diz apaixonado Joe Manarino.

11/05/2009

Mangá como cultura popular

Por: Fabio Ramos*

Desde a década de 80, quando os primeiros mangás chegaram ao Brasil, os quadrinhos japoneses conquistaram legiões de fãs no país. Mangá é o nome dado às histórias em quadrinhos de origem japonesa. A palavra surgiu da junção de outros dois vocábulos: man, que significa involuntário, e gá, imagem. Os mangás se diferenciam dos quadrinhos ocidentais não só pela sua origem, mas principalmente por se utilizar de uma representação gráfica completamente própria. Pra começar, o alfabeto japonês se compõe de ideogramas que não só representam sons, mas também idéias. Assim, em um mangá o texto em geral, mas principalmente as onomatopéias, fazem parte da arte. A ordem de leitura dos mangás também é diferente daquela que estamos acostumados. Um livro japonês começa pelo que seria o fim de uma publicação ocidental. Além disso, o texto é disposto da direita para a esquerda. No mangá, a imagem tem mais peso que as palavras. Da-se grande importância ao contexto nas narrativas.

Outra característica peculiar dos mangás é que eles são publicados em volumes de mais ou menos 200 páginas cada, o que permite aos autores criar histórias mais longas e aprofundadas. Nos últimos tempos, a supremacia dos gibis ocidentais vem sendo ameaçada pela invasão dos mangás. E eles não chegam sozinhos. No meio audiovisual, os animes, ou desenhos animados japoneses, também estão dominando. Dessa forma, em um mangá é comum ver várias páginas só de imagens, sem diálogos, e também ações que se desenrolam por muitos quadrinhos e abordadas por diferentes pontos de vista. A disposição dos quadrinhos em uma página de mangá é diferente daquela que se costuma ver num comic americano, que costuma ter 3 ou 4 fileiras de quadrinhos por páginas. Como os mangakás (nome dado aos autores de mangás) dispõe de um espaço maior para contar sua históra, também empregam um número menor de quadrinhos por página - não é difícil ver página até sem quadrinhos, com uma única imagem estourada. Também é característica dos mangás serem feitos completamente em preto-e-branco e em papel jornal, o que torna o produto mais barato e faz com que ele seja consumido por todo tipo de pessoa - no Japão eles são lidos por crianças, estudantes, executivos, donas-de-casa…

Esses são apenas alguns pontos que caracterizam os mangás. Só que o principal é a capacidade que eles têm de encantar pessoas do mundo todo. Ler um mangá é uma experiência única. É mergulhar em um mundo próprio. Cheio de ação, emoção, heróis, criaturas mágicas e muita, muita diversão. Nas HQs ocidentais, a trajetória dos protagonistas pode permanecer a mesma durante anos e é possível prever o desenrolar de cada enredo. No mangá, os personagens se transformam constantemente, passando por diversas formas de apresentação — muitos, inclusive, envelhecem. E mesmo que determinada trama tenha alcançado muito sucesso, ela não volta a ser publicada. Os quadrinhos japoneses são notórios pela economia de texto e pela força das imagens. Descrições, narrações e diálogos geralmente são mínimos e ditam um ritmo de leitura acelerado. Por outro lado, as onomatopéias são presença marcante

Existem várias palavras relacionadas ao universo mangá, que com certeza para os que não acompanham a cultura milenar, torna-se uma tremenda confusão. Anime é um termo que designa os desenhos animados japoneses, também pode ser grafado como "anime". É a abreviação de "animation" e ganhou força nos anos 60 graças ao pioneiro do mangá Osamu Tezuka. Dojinshi é uma palavra que define os fanzines japoneses. Fanzine é um tipo de publicação amadora cujo nome vem da junção das palavras "fan" e "magazine". Existem fanzines no mundo todo sobre rock, poesias, cinema, quadrinhos e etc. Muitos se dedicam a publicar histórias feitas por amadores. Impressos em xerox ou off-set, os fanzines são a porta de entrada de muitos artistas em início de carreira. No Japão, a coisa não é diferente, mas o mercado dos dojinshi é bastante profissional. Impressões luxuosas são vendidas em convenções espalhadas pelo país e com desenhos que muitas vezes não deixam nada a dever às publicações profissionais. Hentai literalmente, significa "anormal" e é a palavra usada pra definir o material de mangá e anime de cunho erótico. Kaiju normalmente traduzido como "monstro", o termo ganhou popularidade com os "kaiju eiga" (ou "filmes de monstro"), que foram a base do cinema de ficção japonês. Iniciando com Godzilla em 1954, o gênero reinou nos anos 60, mas perdeu força com a invasão dos super-heróis para TV. Os "kaiju" mais famosos no Japão são: Godzilla, Mothra, Gamera, King Ghidra e Baltan (da saga da Família Ultra). Existem muitas outras palavras sobre o gênero, que sem dúvida os interessados passarão a conhecer na medida da convivência.

Como se vê, o mangá é algo enraizado na cultura japonesa há mais de três gerações. É natural que muitos leitores de mangá desejem um dia se tornarem também desenhistas ou roteiristas de mangá. Nos anos 50, período em que a maioria da população japonesa não tinha recurso, popularizou-se as casas de aluguel de mangás. Nos anos 60/70 elas deram lugar às livrarias como hoje conhecemos, e a lenta recuperação da economia japonesa trouxe dinheiro para o bolso do povo, que começou a dar-se ao luxo de comprar o que antes só podia alugar. Nos anos 80 a coisa explodiu, e algumas revistas semanais alcançaram a monstruosa marca de cinco milhões de exemplares vendidos semanalmente. . Artistas como Katushiro Otomo ( Akira ), Nobuhiro Watsuki ( Kenshin e Samurai X ) e Naoko Takeuchi ( Sailor Moon ) são referências no Japão, principalmente por terem começado na arte através dos Dojinshis, os fanzines japoneses.

Os animês japoneses tornaram-se hoje em dia cultura pop internacional e transitam livremente pela Ásia e Europa, embora tenham tido origem no Japão. Interessante é que até o mercado americano onde os super-heróis são tradicionalmente a linguagem dos quadrinhos abriu suas portas para este estilo quase que por acaso. Isto tudo aconteceu na época em que Miller assinava seus primeiros sucessos e o mangá era ignorado nos EUA. Reza a lenda que Frank Miller, certa vez, ganhou de um amigo uma antologia de O Lobo Solitário, em japonês, que ele passou a folhear até gastar suas centenas de páginas — depois de digerir as imagens daquela violenta história de samurai, de investigar e de refletir sobre o universo dos guerreiros do País do Sol Nascente, regurgitou tudo em uma obra experimental e revolucionária, em que ousou narrar em uma nova linguagem gráfica — nascia, então, o primeiro mangá americano. Ronin, foi lançado precisamente em julho de 1983, nos EUA, pela DC Comics, em formato de minissérie, em 6 partes. Ronin é pioneiro por ter sido o primeiro romance gráfico a ser visto como um projeto de ponta pela DC Comics, também por conter a mítica cultural e os costumes japoneses, ao mesmo tempo em que apresenta um manifesto contra o corporativismo empresarial nipônico, que começava a ameaçar a América dos anos 80. A obra, ainda hoje, é considerada surpreendente. O personagem Ronin é um samurai sem mestre, que reencarna em um deficiente físico, numa Nova York futurista e degradada, mergulhada em decadência.

A realidade é que, Sem dúvida, os mangás hoje dominam todos os mercados de quadrinhos do mundo. Dragon Ball sozinho vende mais que todos os super-heróis norte-americanos reunidos. Isso no Brasil, na Argentina e na Europa. Mas o mais importante é que os mangás estão revelando para os leitores e quadrinistas ocidentais novas maneiras de ver e fazer quadrinhos. Falar de qualquer assunto e para todo o tipo de público. Porque, no Japão, quadrinhos não é só para criança. A cultura popular japonesa não se resume a febres momentâneas. Também, é importante desmanchar visões preconceituosas que acham que quadrinhos japoneses são personagens de olhos grandes, e lutar contra visões distorcidas que acham que mangás são pura violência. Aliás, esses detalhes são traços característicos do mangá, os olhos arregalados é na verdade para melhor transmitir aos leitores as sensações das personagens através das expressões faciais. Os mangás significam 40% da produção editorial do Japão. É uma tradição que começou há muitos séculos e que passa por várias artistas. Que o mangá já está consolidado no mercado brasileiro, disso já sabemos, mas que não se faça somente tradução, vamos criar nosso mangá também.

* Fabio Ramos é colecionador de gibis, jornalista free lancer e colunista do nosso blogger.

ENTREVISTA: Henrique Magalhães

Henrique Paiva de Magalhães é um daqueles caras bem persistentes. Este paraibano, nascido em João Pessoa, criou vários personagens de HQ e se tornou um dos batalhadores mais incansáveis em prol dessa arte. Por anos teve suas tiras publicadas em vários jornais brasileiros e até em Portugal. Atualmente se dedica a sua editora Marca de Fantasia, onde publica vários livros, muitos dos quais voltados aos quadrinhos. Nessa excelente entrevista, ele fala da sua iniciação no mundo dos quadrinhos, seus personagens, suas idéias, sua editora e sobre os fanzines como publicação alternativa. Confiram o bate papo.

Por Alex Sampaio*

1. Quem é Henrique Magalhães?Eu diria que sou um sonhador, mas que, por precaução, mantenho os pés firmes no chão. Aliás, não precisa se alienar para viver de sonhos. Transformei minha arte, meu sonho, em algo prático. Na impossibilidade de viver de quadrinhos, virei professor e amplio o sonho de produzir publicações independentes – fanzines, revistas – com meus alunos.
2. Como surgiu seu interesse pelos quadrinhos?Como acontece com toda criança, na descoberta das primeiras leituras, no encantamento de uma linguagem não só escrita, mas, sobretudo visual. Ao menos em meu tempo de garoto, quando a televisão apenas começava a ganhar importância, nossas viagens se davam por intermédio dos quadrinhos, seja com as aventuras fantásticas de Tio Patinhas, com o maravilhoso universo infantil de Luluzinha e Mônica ou até com os dramas existenciais do Homem Aranha.

3. Qual sua formação como desenhista?Procuro sempre afirmar que não me considero um bom desenhista, apenas desenvolvi um modo particular de me expressar. Minha formação deu-se pela observação, pela cópia e recriação. Desde cedo eu praticava o desenho ampliando as personagens que mais gostava. Isto me deu uma certa noção de proporção e expressividade. Daí a criar minhas próprias personagens foi um passo natural, uma necessidade de comunicação e expressão.

4. Como surgiu sua personagem Maria?Eu começava a sentir vontade de não mais copiar figuras isoladas, mas criar histórias que me vinham à mente. Ainda adolescente, tinha uma grande vontade de me mostrar ao mundo, de dizer o que sentia, de enfim me afirmar como indivíduo pensante. Maria surgiu em 1975, quando eu tinha 17 anos, quase 18. Para criá-la fiz uma breve pesquisa sobre as personagens nas revistas que mais curtia. Estava descobrindo as tiras, publicadas no Caderno B do Jornal do Brasil, nas revistas Grilo, O Bicho, Patota e Eureka. As tiras, com seu formato breve, sucinto, de conteúdo questionador e instigante, me seduziam. Para não criar algo semelhante ao que já existia, observei que praticamente não havia personagens femininas nas tiras, com exceção de Mãi...ê!, de Mell Lazarus. Trabalhar então com o universo feminino foi o que me pareceu mais sedutor, pelo ineditismo e porque eu me identificava muito com ele. Depois vim descobrir que existia Marly, de Milson Henriques, mas esta personagem não tinha a mesma abordagem de Maria.

5. Maria foi publicada por anos em jornais, tendo um sucesso inquestionável. O que não deu certo para seguir um caminho definitivo no meio editorial?É notório o descaso das grandes editoras com os quadrinhos brasileiros. Não há investimento na área e o máximo que elas fazem é reproduzir porcamente (com traduções mal-feitas e cortes grosseiros) as personagens consagradas e de lucro certo. Neste contexto, Maria não teria mesmo a menor chance de circular em nível nacional. Quando Maria se firmou como personagem já não havia mais as revistas de tiras, onde talvez ela pudesse ser publicada, como ocorreu com Marly, de Milson, que saiu na Patota. A saída foi publicá-la nos jornais diários da Paraíba, que me serviram para desenvolver a personagem, refinar o traço e o humor. Em paralelo, eu mesmo editava as coletâneas de tiras numa série de revistas que teve 10 edições e um um livro, A maior das subversões. Posteriormente lancei o álbum Olhai os lírios do campo, mais o livro Espirituosa, há 30 anos e duas edições da revista Maria Magazine. Apesar desse investimento independente, ressinto-me de Maria não ter tido uma grande edição nacional, que a levasse a um público mais diverso que o dos fanzines.

6. Fale sobre suas outras publicações, como Top! Top!, Mandala e Quiosque.Estas publicações são fruto de um amadurecimento editorial em conseqüência de minhas produções independentes de revistas, livros, álbuns e fanzines. Elas vieram com a elaboração do projeto da editora Marca de Fantasia, que falaremos mais à frente.Top! Top! foi minha volta aos fanzines, depois de uma temporada na França. Nele eu segui o mesmo esquema de minhas publicações anteriores, os fanzines Marca de Fantasia, editado em João Pessoa e São Paulo, em parceria com Sandra Albuquerque, e Nhô-Quim, cujo primeiro número foi feito junto com José Carlos Ribeiro, de Carlos Barbosa, RS, editor do fanzine PolítiQua. Top! Top! responde a minha necessidade de trabalhar o texto jornalístico, investigando vários aspectos das histórias em quadrinhos com pesquisa, artigos, entrevistas e resenhas.Mandala, que inicialmente chamou-se Tyli-Tyli, surgiu para preencher uma lacuna editorial. Observei que havia uma grande produção de quadrinhos poéticos, também chamados filosóficos, circulando em fanzines dispersos. Minha intenção foi reunir esses quadrinhos em uma revista própria, dando-lhes coesão e visibilidade. O núcleo que formou essa revista foi composto por Flávio Calazans, Edgar Franco e Gazy Andraus, a quem vieram se juntar muitos novos autores que encontraram na Mandala seu espaço privilegiado para expressão.A Quiosque é uma revista de análise das mídias, voltada para o meio jornalístico e de comunicação. Serve para dar vazão aos artigos produzidos por professores e estudantes do Curso de Jornalismo, mas que se encontra aberto a todos.Esse título também serviu para denominar uma coleção de livros de bolso. A coleção Quiosque, que já se encontra na 12ª edição, aborda os mais variados aspectos dos quadrinhos e expressões da cultura pop. Nessa coleção constam vários títulos voltados ao estudo dos fanzines bem como sobre quadrinhos e arquitetura, ao estudo de personagens e séries, como Miracleman e Arquivo X e a investigação sobre o que é História em Quadrinhos Brasileira.A importância da coleção Quiosque, que tem despertado grande interesse do meio acadêmico, dá-se pela carência de uma bibliografia específica sobre quadrinhos no país. As editoras comerciais também negligenciam essa área, o que nos parece uma grande falta de visão editorial.

7. Como surgiu a Marca de Fantasia?Depois de experimentar tantas publicações de forma amadora e esporádica, achei que era o momento de pensar em algo mais consistente, que pudesse responder à enorme demanda dos autores e do público. O fenômeno da criação de editoras independentes já vinha se desenvolvendo em outros países, como nos Estados Unidos da América e na Europa, em particular na França. Isto foi uma conseqüência natural do desenvolvimento dos fanzines.Haveria um momento onde se teria que avançar em direção à criação de um mercado paralelo de publicações, intermediário entre o amadorismo dos fanzines e o meio exclusivamente comercial. As editoras independentes não visam o lucro como prioridade, embora não possam abrir mão dele, para seguir com as produções mais requintadas. Mas mantêm o espírito livre e experimental dos fanzines, voltando-se à descoberta de novos valores e à investigação sobre o universo dos quadrinhos. Foram esses princípios que me levaram a criar a editora Marca de Fantasia, em 1995.

8. Sua editora é basicamente virtual. O caminho para a segmentação é a Internet?A Marca de Fantasia, apesar do sucesso inicial, chegou a um impasse crucial. Não dava mais para seguir o ritmo imposto pelas condicionantes que dispúnhamos naquele momento para a distribuição das publicações. Até o final dos anos 1990, o mais comum era se trabalhar com o mesmo processo de distribuição dos fanzines, ou seja, pela via postal. Apesar de procurarmos hoje produzir edições mais elaboradas, continuamos amadores, as tiragens continuam pequenas, o que inviabiliza uma distribuição pelas vias convencionais.Para divulgar um novo título era preciso todo um trabalho desgastante e cada vez mais caro. Primeiro era preciso anunciar o lançamento, enviando para revistas e jornais uma circular de imprensa. Ao mesmo tempo, eu fazia um cartão postal para enviar pelos correios para uma lista de leitores. Isso levava tempo, dificultava o contato e custava caro. Até a compra se efetivar era preciso percorrer um longo caminho, o que gerou o distanciamento e desinteresse do público.Vivíamos já uma época de uma comunicação mais ágil, imediata, favorecida pela popularização da Internet. A saída era transformar a editora numa livraria virtual, tirando proveito desse incrível meio de comunicação. A sobrevivência da Marca de Fantasia deve-se a sua inserção na Internet. Com este meio pude ultrapassar os limites de meus 100 leitores, chegar a um público muito mais amplo e que cresce a cada dia, como uma corrente sem fim.

9. Como você seleciona os trabalhos para publicação em sua editora?Privilegio algumas linhas de produção, como os quadrinhos humorísticos, os cartuns e eventualmente a aventura, quando esta tem um conteúdo crítico com elementos culturais autênticos. O trabalho experimental também tem vez. Dividi minha produção em algumas coleções, que definem suas linhas editoriais. São: coleção Corisco, com quadrinhos experimentais; coleção Das tiras, coração, de livros de tiras de quadrinhos e cartuns; coleção Quiosque, de livros teóricos sobre aspectos diversos dos quadrinhos e cultura pop. Excepcionalmente publico álbuns, outras revistas e livros sobre cultura nacional.Guio-me sempre pela qualidade do material, seja textual, seja gráfico e procuro dar visibilidade aos novos autores. Também procuro fazer o resgate de obras seminais, como o trabalho do cartunista paraibano Luzardo Alves e de expressões internacionais desconhecidas ou pouco conhecidas no país, como o argentino Sergio Más, a francesa Claire Bretécher, o cubano Garrincha e o português Nuno Reis.

10. Quais os planos para o futuro da Marca de Fantasia?Recebo muitos originais para publicação e sinto não poder publicá-los imediatamente. Não tenho estrutura para isso, tanto financeira quanto operacional. Faço todo o trabalho sozinho, da seleção do material à diagramação, da impressão à intercalagem, da costura ao corte, da divulgação à venda. É um trabalho, mesmo que prazeroso, muito desgastante. Preciso tomar fôlego, estabelecer um ritmo mais racional. Vinha publicando dois livros por mês, o que é muito para dar conta de toda a cadeia de produção. Tenho tentado fazer apenas um livro por mês, mas sinto uma pressão muito forte para acelerar o ritmo. Os originais clamam sua edição e os autores ficam ansiosos para ver seus trabalhos editados, o que é bem compreensível.Na coleção Quiosque temos textos de Gian Danton e Bráulio Tavares como os próximos lançamentos. Mas há muitos outros aguardando a vez. Nos quadrinhos, os próximos livros serão A turma do Xaxado, pela coleção de tiras e a reedição de Lugares In-comuns, com tiras de Jaguar, lançada originalmente na década de 1970 pela editora Codecri, do jornal O Pasquim. Estou planejando algumas parcerias para novas coleções, que podem ser anunciadas no momento oportuno.

11. Quais seus personagens preferidos no mundo dos quadrinhos?Sem dúvida, Fradim, de Henfil, Pererê e Menino Maluquinho de Ziraldo, Mafalda, de Quino, Aline, de Adão Iturrusgarai, Luluzinha, de Marge e Agripine, de Claire Bretécher.

12. Você coleciona gibis?Transformei minha coleção na Gibiteca Henfil, que dirijo em João Pessoa. Não dava mais pra guardar as revistas em casa e resolvi socializá-las. Com a abertura da Gibiteca Henfil a coleção se multiplicou rapidamente por conta das doações dos leitores. Hoje não me dedico tanto a fazer coleções, mas procuro ter algumas edições do que é mais representativo.

13. Que acha dos fanzines como publicação alternativa?Os fanzines são fundamentais para o exercício gráfico e para a troca informações. Eles certamente não acabarão jamais, mesmo enfrentando a sedução dos meios eletrônicos. Vejo cada vez mais jovens se interessando em ter sua própria publicação. Enquanto houver necessidade de expressão e liberdade de pensamento, haverá fanzine.

14. Tem acompanhado os artistas brasileiros que fazem HQ? Poderia citar algum que você admira?Edgard Guimarães é um autor muito criativo e provocador. Suas HQ publicadas em seu fanzine QI já geraram muita polêmica e envolvimento do público. Edgar Franco, Gazy Andraus e Flávio Calazans trazem um sopro de renovação e experimentação aos quadrinhos, que merecia ter uma ampla difusão. Wellington Srbek e André Diniz, além de ótimos editores, fazem um trabalho textual magnífico. Junto com Marcelo Marat, Antônio Éder e Gian Danton eles tem mostrado a capacidade de nossos roteiristas.Há que se louvar o trabalho de Cedraz, o de Lin, de Klévisson, de J. Marreiro, enfim, tem muita gente boa produzindo, que é injusto e antipático ficar citando alguns.

15. Existe futuro para os quadrinhos brasileiros aqui no nosso país, ou teremos sempre que bater nas portas americanas?Há futuro, sim, desde que tomemos as rédeas da produção. É hora de pensarmos na profissionalização. Alguém tem que substituir essa geração conservadora que domina o meio editorial nacional. Não é o caso de tomarmos seus lugares, mas de criarmos os nossos. A editora Circo provou que isso é possível. Basta organização, uma certa visão empresarial, criatividade e perseverança.

16. Muitos acham que a HQ Brasil não funciona por falta de bons roteiristas. Qual sua opinião sobre isso?O melhor dos quadrinhos que está sendo lançado no Brasil está no meio independente. São bons roteiristas e desenhistas que não encontram espaço nas editoras. Sem xenofobia, é preciso olhar e valorizar o que temos em casa.

17. Muitos artistas estão buscando a Internet para divulgar seus trabalhos. Esse é sem dúvida o caminho alternativo para se publicar HQ?A Internet, para mim, serve mais como veículo que como meio. Embora seja um ótimo veículo para a difusão de tudo, inclusive de quadrinhos, o meio impresso continua sendo fundamental. Não creio que o meio virtual substituirá o livro impresso, o jornal, a revista e os álbuns de quadrinhos.

18. Henrique Magalhães já procurou alguma editora para mostrar seus trabalhos?Certa vez procurei a Grafipar, quando ela já havia esgotado sua capacidade produtiva. Não houve interesse por Maria. O tipo de quadrinhos que eu faço não tem veículos adequados para a sua difusão, que seriam as revistas de humor e de tiras. Para a edição de álbum já tive duas propostas que não foram adiante, mais por causa de minha sobrecarga de trabalho que por desinteresse dos editores. Eu não queria apenas fazer uma compilação de tiras. Como não tive tempo para produzir algo novo, o projeto parou.

19. O editor brasileiro é mesmo imediatista nos lucros?Não só imediatista quanto limitado. Sua visão não ultrapassa os modismos importados, como as infinitas sagas de super-heróis, que já são decadentes no próprio país de origem, ou ainda os quadrinhos japoneses, que se apóiam na sedução midiática dos desenhos animados. Quanta coisa boa, em nível mundial, não conhecemos por causa da mediocridade dos editores! A França e a Espanha têm um mundo de quadrinhos que certamente, se tivéssemos acesso, contribuiriam de forma fundamental para a formação de nossos autores e do público.

20. Qual sua opinião sobre uma lei de reserva de mercado para os quadrinhos? Apesar de ter participado efetivamente junto à AQC (Associação de Quadrinhistas e Caricaturistas) do Estado de São Paulo na década de 1980 pela aprovação de uma lei de reserva de mercado para os quadrinhos brasileiros, acho que esta não é a melhor solução. Não é por decreto que se vai criar mercado. Além do desinteresse dos editores, a realidade é que nossos quadrinhos são caros, e há uma justificativa para isso. Os quadrinhos estrangeiros são distribuídos massivamente, por meio dos "syndicates", o que os torna muito baratos. Os autores brasileiros normalmente vendem seu trabalho para uma única publicação, ou, no caso das tiras, para um número muito limitado de jornais. Para sobreviver, o autor nacional tem que cobrar o preço justo de sua arte, ou até bem menos, o que ainda é muito caro para concorrer com o material importado. Certa vez Henfil falou que o ideal seria taxar os quadrinhos importados para que os nossos pudessem concorrer mais ou menos em pé de igualdade com eles. Ainda assim, para mim, haveria uma brutal desigualdade, pois as personagens estrangeiras chegam aqui cercadas por uma grande estrutura mercadológica, associadas a diversas mídias, como desenhos animados para TV, filmes de cinema, bonecos e todo tipo de insersão em objetos comerciais. Além da taxação dos quadrinhos estrangeiros, penso que se deve criar estruturas de distribuição com a mesma estrutura dos "syndicates", bem como promover a criação de associações e editoras independentes.

21. Suas considerações finais:A luta é árdua e constante, mas quanto prazer nos dá esse mundo dos quadrinhos! Devo a ele boa parte do que sou, minha disposição de luta, minha visão de mundo, minha motivação. Precisa ser mais importante que isso?

* Alex Sampaio é editor do fanzine Made in Quadrinhos, colecionador de gibis e colunista desse blogger.

11/04/2009

As Diretrizes das Histórias em Quadrinhos

Por: Emir Ribeiro*

As diretrizes fixadas para a publicação das histórias em quadrinhos estão tomando o caminho errado. Edito revistas e fanzines desde 1978 e coleciono quadrinhos desde 1967. São mais de 30 anos de experiência e prática. Nesse tempo, pude perceber que o público leitor brasileiro gosta de personagem fixo e não histórias avulsas. Tome-se por base a Kripta da RGE, de longa vida; Tex, no tempo da Vecchi, da Globo e hoje na Mythos; mesmo a linha Vertigo da Abril, mais intelectualizada, apresentava personagens fixos, como Hellblaizer; os heróis da Marvel e DC que nunca pararam de circular até hoje. Agora cite-me uma revista de HQ avulsa sem personagem fixo com vida longa...

O público brasileiro adora novela. Gosta de acompanhar a vida dos personagens como se fossem amigos. O público torce por eles, se empolga com as coisas boas que acontecem. Quem não se emocionou com o casamento do Fantasma? Quem não se angustiou com a morte de Gwen Stacy no Homem Aranha da EBAL? Quem não se penalizou com Frank Drake quando sua Jean se transformou em vampira e teve de ser morta, na Tumba de Drácula da Bloch? Quem não se chocou ao saber que o Dr. Alec Holland morrera e o Monstro do Pântano era só uma planta na aula de anatomia? A persistir a atual política editorial, este filão não poderá mais ser explorado.

Não adianta escrever histórias destinadas a intelectuais. Elas devem ser compreendidas também por gente mais simples. Se o texto não arrancar do leitor algum tipo de sentimento de identificação pessoal, ele fracassa.

Não é preciso encher a revista de personagens fixos, mas sim, destinar uma porcentagem das páginas a eles. O rigor deverá ser maior na seleção dos desenhos. Existem bons textos com desenhos sofríveis. Bons desenhos sempre cativam o leitor. As primeiras histórias a serem lidas devem ser sempre as melhores, para ‘pegar’ o leitor logo no primeiro momento que folhear a revista.

*Emir é o autor da personagem Velta, editor de vários fanzines e colecionador de gibis.