Quando os quadrinhos e rock compartilham as páginas de uma revista, ou ilustram a seção de tiras de um jornal, o que se vê na maioria das vezes é uma baciada de estereótipos: os homens são escrotos, gordos e porcos, cheios de piercings e tatuagens, e as mulheres, avoadas e sempre dispostas à uma transa fácil. Enfim, exemplares dos dois sexos inadequados à sociedade, sempre metidos nas aventuras mais sem pé nem cabeça jamais vistas. Existem alguns resquícios desse comportamento de risco, mas são espécies à beira da extinção. Para quem houve rock, sobreviver na selva de concreto nos dias de hoje não é mais ter uma camiseta preta com uma estampa do Iron Maiden, e andar com o cabelo comprido e uma calça jeans toda rasgada pelo centro das grandes cidades. Até os apaixonados por um som mais pesado não vem dispensando o uso de um Adidas no pé e um agasalho com algumas listras. Ser roqueiro hoje em dia é ter a rebeldia de um punk com todo o jogo de cintura de um intelectualóide como Fernando Henrique Cardoso. Não deve ser a toa que a cena independente brasileira vive uma nova era de esperança desde o mandato do nosso ex-presidente. Se você está completamente por fora da atual cena roqueira nacional, infectada pelo cenário independente - o único vírus do bem já identificado - um bom primeiro passo para começar a se atualizar é a revista Mosh! (Gibiteca Editora, 32 páginas, R$ 3), uma compilação do que há de melhor nos 'quadrinhos indie' do Rio de Janeiro. "A revista foi criada para ser vendida em casas noturnas e shows, em situações em que tudo que você menos quer é ter uma revista na mão. Sendo assim ela foi criada no formato de bolso, para não virar um transtorno", explica Sandro Lobo, editor da revista. Com impressão e papel de primeira qualidade, muito diferente do que costuma-se observar no primeiro número de um fanzine por exemplo, é quase um pecado reclamar do preço que a publicação é vendida. "A Mosh! não é um fanzine, onde jovens desenhistas treinam seus talentos", diz Lobo. Mas sim uma revista em quadrinhos especializada em música, com uma preocupação editorial, de conteúdo, impecável, "acredito que seja fruto da maturidade dos autores [a clareza das imagens e desenhos]", emenda Lobo. Você já está obsoleto se pensa que quadrinhos são só a Turma da Mônica e os heróis anabolizados, com capas e cuecas por cima da calça.
Vinícius Mitchell, 23, cartunista cujos trabalhos costumam freqüentar diversos salões de humor no Brasil, inaugura a Mosh! com 'The Helveticas'. Na história ele reivindica aos indies aquilo que à eles pertence: o culto antes secreto, reservado à grupos não muito numerosos, de bandas que não estão no catálogo das gravadoras 'majors', e que vem chamando a atenção de um número cada vez maior de pessoas de fora do mundinho independente. Essas bandas usufruem inclusive do poder de divulgação de um canal de televisão aberto por exemplo. Vendidos!, é o que grita indignado o protagonista. Em seguida vem 'The Cirrose Rock Band' para contestar tudo o que foi escrito nas linhas acima, com dois carinhas bem freak falando um monte de palavrão e comentando dos melhores show do mundo na opinião deles, em que asas de morcego são arrancadas com a boca em pleno palco, pintinhos são esmagados com botas cheias de espinhos e páginas da bíblia servem de papel higiênico. Mas percebam que até mesmo esses dois personagens tem topetes, uma barbicha e um piercing discreto na sobrancelha. Destaque para a letra da música que os dois tocam quando resolvem formar uma banda para parecerem com seus ídolos: 'O peido é o rock das pregas!! O peido é o rock das pregas, baby!!'.
Quem chega na seqüência é a sensacional 'Menina Infinito', de Fabio Lyra. Com essa história a Mosh! cumpre a sua missão de retratar fielmente a cena indie, sem clichês preconceituosos. Tudo contribui para o sucesso da história: o ritmo da narrativa, a falta das cores, o traço todo estiloso de Fabio, cenário, ângulos e até o figurino dos personagens, há camisetas para todos os gostos, Nine Inch Nails, Stereolab, Primal Scream. O enredo é muito bem bolado, confirmando a máxima, 'gosto não se discute, lamenta-se'. 'One Show Bands' fecha a revista ensinando que o importante é ter uma banda de rock, não importando sob quais circunstâncias. Mas não acaba por aí. Há ainda uma entrevista com os Autoramas, queridinhos da cena, e a coluna 'Comic Riffs', onde Heitor Pitombo mostra para o público um exemplo do humor escrachado que não é de intenção da Mosh! realizar. No segundo número os entrevistados serão do grupo carioca em ascensão Jimi James. "Acredito que temos um veículo que interesse às bandas", explica Lobo. Pelas páginas da revista também aparecem alguns anúncios de sebos, bandas e livros lançados de forma independente, alem de um anúncio de página inteira da famosa Bunker, casa de tradição roqueira carioca. "Sem dúvida nenhuma os contatos foram fundamentais, mas as pessoas só embarcaram porque acreditaram no projeto, no conteúdo editorial da publicação", explica Lobo, editor da revista junto de Renato Lima. Lobo também acumula a função de diretor de arte, barrando o que julga não ser apropriado para ser publicado. Renato também desenha ao lado de Vinícius, Lyra e de um outro Fábio, de sobrenome Monstro, que é descrito no site da revista como sendo 'a maior besta devoradora de cachorro-quente de porta de show'. Pode acreditar, sou testemunha disso. Quando pergunto ao Lobo se a Mosh! seria uma resposta à banalização de todo o hype criado em torno do cenário independente, ele me responde sem entender muito a questão, mas todo convicto: "A Mosh! não foi criada como forma de protesto. Foi criada da vontade dos desenhistas em fazer quadrinhos e falar de rock'n'roll. Não pretendemos que a Mosh! seja um produto ideológico. Como os autores da revista curtem músicas do cenário independente, decidimos fazer histórias para esse público". E parecem ter acertado em cheio.
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